Participação dos Confrades

                                                                  Poema

  • Poema

    Vinho Transmontano

    Da terra, das raízes, do suor salgado do rosto,

    Do labor de mãos nodosas e sedentas da jornada,

    Vem o prémio generoso e gárrulo que é o mosto,

    Tinto e alegre ardor de alma libertada.

    As palavras, fáceis, escorrem aos bagos,

    Inchadas de sumo e espuma de laço…

    Ressumam, dançantes, de todos os tragos

    E trazem no casco o calor de um abraço.

    Ergamos os copos em pâmpanos gestos

    Para brindar a dádiva desta natureza

    De duros granitos e aráveis modestos.

    Riqueza arrancada à terra todo o ano

    Que no jarro enfeita a alva mesa

    De todo e qualquer lar transmontano.

    José António Silva, Professor

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    Caros Trasmontanos
    Caros Convidados dos Caros Transmontanos
    Senhoras e Senhores
    Ainda ninguém aqui bebeu – digo eu…, a fintar-me no alinhamento do
    programa – e já vamos prò segundo discurso.
    Pensarão os mais báquicos dos meus ouvintes que valerá bem a pena
    atravessar um deserto de palavras – ou dois, ou os que forem, sejam eles
    bem secos e ressecos –, desde que, ao fim, chegue o momento em que
    um fabiano logre afogar as agruras destes tempos insanos nuns copázios
    de tinto.
    Como será bem aqui o caso. E com pompa e circunstância será…
    Leveirinho farei, à conta disso – prometo – este discorrer que assim
    arranca, se para tanto me não faltar arte; que engenho, o que se diz
    engenho, é coisa que toda a vida, a bem dizer, sempre me fez negaças,
    como não tardarão todos vocências a perceber e, se calhar, a lastimar.
    Enfim, oxalá não!
    De bom começo será, de todo o modo – ao menos assim se me figura –,
    sumamente conveniente até, que elucide os meus ouvintes – ilustres, de
    acordo com todos os protocolos –, sobre o porquê deste orador de que
    nenhum, até hoje, tinha ouvido falar. Nenhum, a não ser aquele Senhor
    ali, aquele do ar todo lampeiro, esse mesmo!: o meu amigo Rui Taveira
    – doutor, cantor, professor, que eu sabia pelar-se por uma boa mesa e,
    agora sei que também por uma bela pinga –, e que muitos dos presentes
    bem conhecem, decerto pelas mesmas razões que eu. Pois é a ele que
    devem pedir contas pelo desvario deste desconchavo que sou servido de
    vos servir, à laia de aperitivo.
    E como caiu ele em desatino de tal calibre? Ora, em razão da
    circunstância, completamente inexplicável, de fantasiar no sujeito que
    vos fala competências inteiramente desconformes com a apagadíssima
    existência que o mesmo vem levando, se apraz levar, e de que em tempo
    algum se lembra de ter ansiado desenvencilhar-se.
    E aí está: este meu amigo – do peito, devo acrescentar –, meu e decerto
    vosso, grande apaixonado de Trás-os-Montes (o País musical inteiro,
    conhece as suas impagáveis histórias de Valpaços), apaixonado de
    música, como certamente saberão (doutras paixões já não sei…), músico,
    aliás, ele mesmo e muito prestigiado, saiu-se a encomendar-me, em dia
    em que me achou a atirar prò distraído – e eu ainda não descobri por
    alma de quem –, que aqui viesse, precisamente hoje, a apresentar-vos,
    embrulhada com todos os matadores, num envoltório todo feito de
    palavreado, uma ‘trindade’ absolutamente inopinada, qual é essa que
    mistura Trás-os-Montes, a Música e o Vinho (não o do Douro, que – já
    se vê – embora seja trasmontana a maior colheita dele, o regem outros
    confrades), e aí têm a razão pela qual me vejo agora nesta alhada. Vos
    prego eu esta xaropada.
    Ainda não me refiz do pasmo, essa é que é essa. Pasmo tal que nem deu
    para lhe retorquir: — ó Ruizinho, mas este teu amigo, de vinho – como
    bem sabes –, nem meio copo a débil constituição lhe tolera e, mesmo
    esse meio, só mesmo às refeições… e queres agora encomendar-lhe uma
    borracheira!?
    Mas, as coisas são como são: pasmo é pasmo e, sem que bem desse por
    ela, já tinha assentido na coisa.
    Aqui me têm, pois. Por mal dos meus pecados que hão-de ser muitos e
    desconformemente avantajados.
    Tempo será de virar o bico ao prego do palavrório e de o apontar à dita
    trindade. Salvo seja!
    Parece-me bem que – quer eu, que vou fazendo as despesas da conversa,
    quer vocências que arreguicham as orelhas e à conta disso têm os
    neuroniozinhos espevitados – não ‘empreendamos’, por aí além, em
    metafísicas; antes, de pronto, nos consertemos sobre a perfeita
    identificação de cada uma das trinitárias pessoas, partindo daí para lhes
    definir os papéis e as relações, posto que, enquanto realidades nada
    abstractas (que saboreáveis são, e muito apaladadas), apresentarão,
    nisso, menos quebreiras de cabeça, a qualquer esquadrinhador delas, que
    o modelo de todas as trindades — inefável essa e tão completamente
    misteriosa que só mesmo como dogma de fé se aguenta de pé, como
    logo se viu, desde que trindade a fizeram.
    Trás-os-Montes, essa terra da nossa comum origem – e, por isso, só de
    abençoada pra cima haveremos sempre de a ver – não vislumbro que se
    levante qualquer espécie de obstáculo a que unanimemente a
    reconheçamos como a Terra-Madre, tão soberbamente dotada ela é, seja
    qual seja o reino para que nos viremos – animal, vegetal, mineral (o
    eterno número 3, de novo…). Se não prò quê, atente o meu excelente
    auditório no meu excelente auditório e veja se não se acha bastante para
    comprovar tão expedita asserção. E o que dizer da Terra-Madre, duma
    terra que assim se desentranha em tão rútilos frutos, senão que a
    idolatramos, com todas as nossas ganas, lá onde quer que a sorte nos
    tenha lançado na vida a fazer por ela.
    Então, por Trás-os-Montes, não vai nada? Nada, nada, nada? Ao menos
    três urráhs:
    Urráh! urráh! urráh!
    Ora, a nossa Mãe Terra forçosamente que alguma filha há-de ter. Ao
    menos uma. E por que nome há-de ela dar, visto isso, senão por Música?
    Ao menos a mim, me convém, neste momento, soberanamente, que
    assim seja. Consabidamente, aliás, também a Música se farta de padecer,
    e de amor padece e tudo com ela à sua volta. Ora veja-se se não: entre
    duas grandes alegrias – a dum amor que desponta e a da sua
    consumação, antes que se suma –, quanta amargura, quantos herodes e
    caifazes e pilatos, e pedros negadores, e galos cantadores, quanto
    calvário, e que chusma de ladrões (embora se suspeite, pelo pano da
    amostra, que a nenhum deles haja aqui alguém com disposição bastante
    para o redimir, nos dias que correm, por ‘bom’). E se não estamos a ver
    que morra ela, a Música, isto é, que a mate alguém de qualquer matação
    macaca, nem que, sazonalmente, a festejemos rediviva, quantas vezes
    nos não deixa ela a nós pra morrer, e quantas outras nos não trás de
    novo, bem jubilosos, de volta à terra.
    Não vou desfiar aqui um rosário completo de modinhas nossas,
    trasmontanas, do mais saboroso que há por toda a roda do mundo.
    Seria um nunca acabar. Depois, bom mesmo, era que todos nos
    puséssemos a cantá-las. Mas, isso, a acontecer, só mesmo – palpita-me –
    depois de algum grão se andar por aí a meter nas asas…
    E lá viemos nós, sem dar por ela, parar ao Vinho. (Pra já, só de
    conversa!… Tenham lá paciência!… A sequeira também ainda não pode
    ser assim tanta!…).
    Ora então, que outro posto haveríamos nós de reservar, numa trindade,
    ao Vinho, senão o do espírito? E dum espírito alado! Naturalmente!
    Como convém! Pois não é ele bem capaz de nos pôr a voar? E não dá
    connosco, mais copo menos copo, espirituosos até dizer chega? O ponto
    é que a ele nos demos, numa boa roda de amigos! E que a transfega se
    faça para vasilhame – que digo eu? – para odre, que lhe faça jus! Do
    quartilho para cima é certo e sabido: transborda espírito enquanto não
    transborde outra coisa…
    E aí têm. De conversa fiada sobrará. Já aí há despesa que chegue para
    pontapé de saída de evento que se prevê fausto e se deseja fasto.
    A verdade, verdadinha – confesso – é que não foi nunca intuito deste
    orador feito à pressa, em que me vi transformado, vir aqui dizer outra
    coisa senão o que aí fica, ou seja: coisíssima nenhuma. Creio que
    consegui. Ora não?
    Brindo a isso, à penúria do discurso, concorde – bem a contragosto – com
    a penúria dos tempos.
    Mas brindo principalmente ao sucesso de Trás-os-Montes, dos seus
    filhos, e dos seus produtos, com destaque para os vinhos, pois então, que
    são aqui muito de destacar. Vinhos gostosos de Jou, que a Murça a que
    pertenço pertence, vinhos de Valpaços, de Chaves, o “dos mortos” de
    Boticas, que sei eu, por esse interior trasmontano, arriba do Douro, o
    que aí vai de belas pingas! de Alvites, terra do Eurico Carrapatoso! do
    Planalto Mirandês! o “Llaços” do Carlos Meirinhos do Picote! Mas,
    ourinho mesmo, o Quinta das Corriças, o Valle Pradinhos, o
    Persistente, o Quinta de Arcossó. Desfiá-los todos seria outro nunca
    acabar, como melhor sabe qualquer boca sequiosa dessas paragens.
    A todos brindo e não encontro nada mais a preceito, para o fazer, que a
    lenga-lenga de meu pai, que era homem de muito espírito, trasmontano
    dos quatro costados e se pelava por um bom copo:
    Anda cá meu fusco,
    Sou eu que te busco.
    Foste criado na cepa e não na giesta,
    Vais prà boca e não prà testa.
    Foste criado na cepa torta,
    A uns fazes perder a cabeça, a outros errar a porta.
    Aqui vai, aqui nu
    Aqui vai à saúde de quem tem o dedo no… (do copo, claro!…)
    Porto, Palácio do Freixo, 25-05-2013
    José Luís Borges Coelho, Professor

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